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PARTE I - Jogos de azar

JÁ APOSTOU HOJE?

“Aí a doença falou, você perdeu o carro. Perdi um restaurante, perdi um apartamento. Perdi uma grana, cara. Aí, minha esposa fala aquilo, né? ‘Se você estiver jogando, você vai ficar sozinho”, relata Victor, um viciado em jogos de azar que está em recuperação. Aos quarenta e seis anos, ele detalha o tempo em que estava submerso nas apostas e o que fez para melhorar de vida. Mas a fala da esposa remete a 2019, ano em que teve sua segunda recaída. Indignado, ele conta que na época se recusou a perder as filhas pequenas e o casamento para a jogatina. 

A especialista Mariangela Blois compara o vício à realização de uma dieta. Para a psicóloga, o maior desafio é fazer uma pessoa abandonar uma prática que dá prazer. Enquanto o prazer é imediato durante o vício, numa dieta o prazer é adiado. Por isso é tão difícil para pessoas como o Victor largar a jogatina, já que o tratamento é um processo demorado, assim como a dieta. ​​

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Como o vício atua no cérebro?

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Victor confessa que os jogos de azar eram uma fuga para dívidas que arranjou anteriormente e problemas emocionais que não sabia como lidar. Isso é confirmado por Mariangela, pois, segundo ela, pessoas viciadas têm uma tendência a querer preencher uma sensação de vazio com algo que dá prazer. A especialista ainda pontua que a falta de entendimento sobre as próprias emoções leva à continuidade do vício. No caso de Victor, o relacionamento com os jogos é antigo.

Ele conta que, aos quinze anos, começou jogando roleta numa festa junina. Aos vinte, decidiu investir na bolsa de valores. Apesar de investimento e aposta serem hábitos distantes em vários aspectos, o ato de investir na bolsa pode ser de alto risco e levar a rápidas perdas financeiras caso a pessoa escolha o investimento no momento errado. A compulsão, porém, atingiu seu ápice aos trinta anos, quando Victor alternava os gastos entre bolsa de valores e jogo do bicho.​​

 "Quando eu tô dentro do jogo, não controlo meus atos. A doença manda em mim 24 horas"

Victor desabafa sobre vício em apostas

O empreendedor detalha como era sua rotina semanal em 2020. O início era no sábado, quando ele precisava pagar duas bancas do jogo do bicho. Uma exigia o valor completo, enquanto a outra era mais flexível. “Eu falo que faço faxina nas contas”, brinca Victor. O acesso às contas bancárias dos restaurantes, da esposa e da mãe fortaleceu o vício por um longo tempo. 

Numa sexta-feira, em janeiro de 2013, foi quando Victor parou de jogar pela primeira vez. Mas ele não conseguiu isso sozinho, obteve o auxílio de uma sócia que não aguentava mais vê-lo se destruir. “Então, é hoje que nós vamos parar de jogar?”, diz o homem, relembrando a fala da moça. Ele concordou e, na mesma hora, ela ligou para o Jogadores Anônimos, um grupo que tem o objetivo de recuperar as pessoas viciadas em jogos de azar. A irmandade tem unidades na cidade de São Paulo e Rio de Janeiro, mas a reportagem optou por não divulgar a localização exata. Victor frequentou o local por quase sete anos, até novembro de 2019, quando apostou novamente. 

O primeiro passo para lidar com um problema é reconhecer sua existência, segundo a psicóloga Mariangela Blois. Ela completa que as técnicas da terapia também são úteis para o paciente perceber outras questões que o levam a jogar. Ciente de sua situação, Victor não sustentou a recaída por mais de dez meses. Ele pagou o jogo do bicho e retornou ao grupo de apoio. Psicólogo e psiquiatra também se tornaram parte de sua rotina.

O empresário conta que muitos em sua posição pensam em tirar a própria vida, mas que sempre considerou essa escolha a mais covarde. O amor pelas filhas o impediu, já que não queria transferir todos os seus problemas financeiros à elas. Casado há quinze anos, alega que a esposa o enxergou como o marido afastado do jogo quando ele apostou novamente. Ela viu o bom pai. 

A fuga do vício, entretanto, é mais complexa do que reuniões em grupo e com profissionais da saúde. Em determinado momento da entrevista realizada de forma online, Victor desliga o microfone. Quando questionado, avisa que está fumando e bebendo. O momento resgata o fato de dependentes poderem substituir o vício por hábitos nocivos que não necessariamente os prejudicam na mesma intensidade.

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Mariangela fala sobre desvios

no tratramento.

"Acho que vou pegar uns remédios da minha esposa, tomar tudo e acabar logo de vez"

Isso foi o que Vicente, outro viciado em jogos de azar em recuperação, pensou ao perder uma aposta num jogo de tênis. Ele não teve coragem para realizar o ato. Durante o casamento, Vicente e a mulher cuidavam de três cachorros e um gato,  o episódio se refere a quando ela e a mãe levaram um dos cachorros ao veterinário. O valor da consulta era desconhecido, mas, mesmo assim, ele sabia que não tinha o dinheiro. Desesperado na época, relata ter zerado a conta bancária e apostado no saque de um tenista que acertava quase sempre. Dessa vez, porém, errou. 

“No começo de 2022, eu fui diagnosticado, né? Câncer de testículo”, explica Vicente. Para resolver o problema do veterinário, ele então conversou por ligação com um primo e inventou que não tinha dinheiro para pagar o laboratório que guardou o sêmen após a retirada de um dos testículos. O argumento convenceu o familiar, que recebeu todo o dinheiro de volta duas semanas depois para evitar desconfianças. Mas, assim como em outros momentos, Vicente recorreu ao cheque especial, modalidade de crédito bancário usada quando não há saldo suficiente na conta. Há cobrança de juros. 

A psicóloga Mariangela comenta que é comum o viciado utilizar artifícios para fingir que está bem financeiramente, porque ele se convence de que ganhará muito dinheiro. Apesar disso, geralmente, acaba perdendo muitos bens e deteriorando os relacionamentos, pois a jogatina vira o centro de sua vida.  

A relação de Vicente com as apostas teve início em 2015, era apenas um hobby de seus amigos que o espreitava no trabalho. Também aderiu à prática, mas diferente dos outros, foi tomado pela compulsão com o passar dos anos. Ainda que diga ter feito o tratamento de câncer tranquilamente em 2022, sugere que a situação pode ter impulsionado o vício, porque o volume de apostas explodiu no período. 

"é um ciclo que não acaba pra quem é compulsivo. Você não vai acabar, você nunca para de jogar."

Vicente fala sobre sua incapacidade de largar as apostas

Em julho de 2023, o avô dele faleceu na Bahia. Era o início de um período que desmoronaria seu casamento. Por ser economista, ele administrava todas as finanças e a confiança era alta entre ambos. Mas Vicente era um economista sem dinheiro. Endividado, arranjou desculpas à esposa para não comparecer ao velório.

Na rotina de trabalho, Vicente tinha a opção de ir ao local, mas preferia ficar no escritório de casa por ser mais fácil de apostar. Ele apostava no meio das reuniões online. Sempre atento aos passos da mulher, que estava em outro cômodo, fechava as telas dos jogos ao escutá-la se aproximar. Segundo a especialista Mariangela, o isolamento e a perda de vida social são características de viciados em jogos de azar. 

A mentira não durou muito. No segundo semestre do ano, a luz do apartamento foi cortada e Vicente precisou ser honesto com a esposa, que iria realizar uma prova para se tornar delegada. Não passou. Separados desde setembro de 2024, alega que ela o culpa até hoje pelo ocorrido, mas não se sente no direito de pedir perdão. Assim como Victor, Vicente foi salvo por uma moça. A ex-mulher descobriu a irmandade Jogadores Anônimos na internet e o encaminhou. Em caso de recaída, ela o abandonaria, mas isso nunca aconteceu. Hoje, eles se respeitam e conversam quando Vicente vai visitar os bichos de estimação.

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