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MALVADO FAVORITO
Como o apreço de parte dos brasileiros pelo tabaco, álcool
e jogos de azar impacta na saúde mental e financeira.


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* Esta é uma reportagem produzida por Fernando Simonet, Gabriel Henrique e Jônathas Grunheidt - estudantes de jornalismo da UFSM/FW
A percepção de que a segurança pública piorou no Brasil tem crescido nos últimos anos, ainda que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) demonstre queda contínua na taxa de homicídios a partir de 2018. Apesar disso, mais da metade da população atribui criminalidade e tráfico de drogas como um dos principais problemas do país de forma recorrente nas pesquisas do instituto AtlasIntel.
Mesmo assim, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país registrou quase quarenta mil assassinatos em 2023, o que o mantém na liderança global em números absolutos. Há outras razões, porém, para considerar o Brasil uma nação violenta, como a agressão à saúde mental e financeira das pessoas. Nesse mesmo ano, o Datasus apontou uma taxa de 33 óbitos para cada cem mil habitantes em decorrência de bebidas alcoólicas, o que corresponde a aproximadamente setenta mil mortes. Na mesma direção, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) havia revelado em 2020 que o tabagismo, a dependência do consumo de tabaco, foi responsável por pouco mais de 160 mil óbitos no país.
Assim como os homicídios, a dependência desses dois produtos afeta a história de milhões de famílias brasileiras. Quem não conhece um familiar ou amigo passando por dificuldades em razão do vício que atire a primeira pedra, pois com certeza é ciente de pessoas que ao menos bebem, fumam ou apostam esporadicamente. Talvez, possa até ser esse alguém. Então, será que uma morte lenta e gradual ocasionada pelo consumo de produtos industriais não deve ter a mesma importância que um assassinato por arma de fogo?
Os jogos de azar são outro hábito que se estabeleceu como questão preocupante de saúde pública. Em setembro de 2024, o Banco Central destacou que 5 milhões de beneficiários do programa Bolsa Família destinaram mais de R$ 3 bilhões para as apostas. Para a mestre em psicologia clínica Mariangela Blois, a propaganda influencia bastante na normalização das apostas, já que a prática é associada ao esporte, atividade que ela classifica como saudável.
A psicóloga também afirma que muitas pessoas passam a enxergar esse tipo de jogo de forma inofensiva por estar na televisão. O movimento das apostas é semelhante aos períodos, no Brasil, em que empresas de cigarro e bebidas alcoólicas inundaram a programação com comerciais. Atualmente, os dois setores têm permissões mais tímidas para divulgação.
Para entender o agora e mudar o depois, porém, é preciso compreender o antes. Os jogos de azar desembarcaram no país em 1808 e foram um dos múltiplos legados que a corte portuguesa enraizou no país. Na época, o rei Dom João VI fugiu do imperador francês Napoleão Bonaparte por se recusar a aderir ao bloqueio de mercadorias inglesas. Da mesma forma, a visão mercadológica do tabaco brasileiro se deve à exportação iniciada por Portugal enquanto o Brasil ainda não era independente. A planta era usada pelos indígenas em seus rituais religiosos e eles costumam ter uma relação com a natureza que diverge da busca por lucro. O álcool percorre um caminho similar, já que as tribos indígenas tomavam bebidas alcoólicas como o cauim até serem apresentadas aos aguardentes e à cachaça. Essa última, segundo estudos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, surgiu da fermentação da cana-de-açúcar e está relacionada ao processo de escravização e extermínio dos povos nativos.
Em quinhentos anos, o Brasil passou por diversas mudanças no regime de governo. A colônia virou nação. A monarquia se tornou república. A república deu lugar à ditadura e, por último, à democracia. No decorrer desse tempo, os três setores sofreram restrições e afrouxamentos no modo de circulação, mas nunca deixaram de estar presentes. Dados da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), do Índice de Potencial de Consumo e do banco XP Investimentos mostram a magnitude econômica desses mercados.
Para além desses números que abastecem o cofre de grandes empresas, existe o impacto nas famílias, nos casais e nas amizades. A reportagem consultou especialistas para entender por que, mesmo cientes dos malefícios, alguns mantêm o consumo ou o vício nesses produtos. Também foram ouvidas pessoas que, diariamente, buscam enfrentar as práticas. Para embarcar na jornada de cada uma delas, primeiro é preciso entender o que significa ser um viciado.
A psicóloga Mariangela Blois explica os aspectos do vício e como funciona a mente do individuo viciado

PARTE I - Jogos de azar
JÁ APOSTOU HOJE?
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“Aí a doença falou, você perdeu o carro. Perdi um restaurante, perdi um apartamento. Perdi uma grana, cara. Aí, minha esposa fala aquilo, né? ‘Se você estiver jogando, você vai ficar sozinho”, relata Victor, um viciado em jogos de azar que está em recuperação. Aos quarenta e seis anos, ele detalha o tempo em que estava submerso nas apostas e o que fez para melhorar de vida. Mas a fala da esposa remete a 2019, ano em que teve sua segunda recaída. Indignado, ele conta que na época se recusou a perder as filhas pequenas e o casamento para a jogatina.
A especialista Mariangela Blois compara o vício à realização de uma dieta. Para a psicóloga, o maior desafio é fazer uma pessoa abandonar uma prática que dá prazer. Enquanto o prazer é imediato durante o vício, numa dieta o prazer é adiado. Por isso é tão difícil para pessoas como o Victor largar a jogatina, já que o tratamento é um processo demorado, assim como a dieta.
Como o vício atua no cérebro?
Victor confessa que os jogos de azar eram uma fuga para dívidas que arranjou anteriormente e problemas emocionais que não sabia como lidar. Isso é confirmado por Mariangela, pois, segundo ela, pessoas viciadas têm uma tendência a querer preencher uma sensação de vazio com algo que dá prazer. A especialista ainda pontua que a falta de entendimento sobre as próprias emoções leva à continuidade do vício. No caso de Victor, o relacionamento com os jogos é antigo.
Ele conta que, aos quinze anos, começou jogando roleta numa festa junina. Aos vinte, decidiu investir na bolsa de valores. Apesar de investimento e aposta serem hábitos distantes em vários aspectos, o ato de investir na bolsa pode ser de alto risco e levar a rápidas perdas financeiras caso a pessoa escolha o investimento no momento errado. A compulsão, porém, atingiu seu ápice aos trinta anos, quando Victor alternava os gastos entre bolsa de valores e jogo do bicho.
"Quando eu tô dentro do jogo, não controlo meus atos. A doença manda em mim 24 horas"
Victor desabafa sobre vício em apostas
O empreendedor detalha como era sua rotina semanal em 2020. O início era no sábado, quando ele precisava pagar duas bancas do jogo do bicho. Uma exigia o valor completo, enquanto a outra era mais flexível. “Eu falo que faço faxina nas contas”, brinca Victor. O acesso às contas bancárias dos restaurantes, da esposa e da mãe fortaleceu o vício por um longo tempo.
Numa sexta-feira, em janeiro de 2013, foi quando Victor parou de jogar pela primeira vez. Mas ele não conseguiu isso sozinho, obteve o auxílio de uma sócia que não aguentava mais vê-lo se destruir. “Então, é hoje que nós vamos parar de jogar?”, diz o homem, relembrando a fala da moça. Ele concordou e, na mesma hora, ela ligou para o Jogadores Anônimos, um grupo que tem o objetivo de recuperar as pessoas viciadas em jogos de azar. A irmandade tem unidades na cidade de São Paulo e Rio de Janeiro, mas a reportagem optou por não divulgar a localização exata. Victor frequentou o local por quase sete anos, até novembro de 2019, quando apostou novamente.
O primeiro passo para lidar com um problema é reconhecer sua existência, segundo a psicóloga Mariangela Blois. Ela completa que as técnicas da terapia também são úteis para o paciente perceber outras questões que o levam a jogar. Ciente de sua situação, Victor não sustentou a recaída por mais de dez meses. Ele pagou o jogo do bicho e retornou ao grupo de apoio. Psicólogo e psiquiatra também se tornaram parte de sua rotina.
O empresário conta que muitos em sua posição pensam em tirar a própria vida, mas que sempre considerou essa escolha a mais covarde. O amor pelas filhas o impediu, já que não queria transferir todos os seus problemas financeiros à elas. Casado há quinze anos, alega que a esposa o enxergou como o marido afastado do jogo quando ele apostou novamente. Ela viu o bom pai.
A fuga do vício, entretanto, é mais complexa do que reuniões em grupo e com profissionais da saúde. Em determinado momento da entrevista realizada de forma online, Victor desliga o microfone. Quando questionado, avisa que está fumando e bebendo. O momento resgata o fato de dependentes poderem substituir o vício por hábitos nocivos que não necessariamente os prejudicam na mesma intensidade.
Mariangela fala sobre desvios
no tratramento.
"Acho que vou pegar uns remédios da minha esposa, tomar tudo e acabar logo de vez"
Isso foi o que Vicente, outro viciado em jogos de azar em recuperação, pensou ao perder uma aposta num jogo de tênis. Ele não teve coragem para realizar o ato. Durante o casamento, Vicente e a mulher cuidavam de três cachorros e um gato, o episódio se refere a quando ela e a mãe levaram um dos cachorros ao veterinário. O valor da consulta era desconhecido, mas, mesmo assim, ele sabia que não tinha o dinheiro. Desesperado na época, relata ter zerado a conta bancária e apostado no saque de um tenista que acertava quase sempre. Dessa vez, porém, errou.
“No começo de 2022, eu fui diagnosticado, né? Câncer de testículo”, explica Vicente. Para resolver o problema do veterinário, ele então conversou por ligação com um primo e inventou que não tinha dinheiro para pagar o laboratório que guardou o sêmen após a retirada de um dos testículos. O argumento convenceu o familiar, que recebeu todo o dinheiro de volta duas semanas depois para evitar desconfianças. Mas, assim como em outros momentos, Vicente recorreu ao cheque especial, modalidade de crédito bancário usada quando não há saldo suficiente na conta. Há cobrança de juros.
A psicóloga Mariangela comenta que é comum o viciado utilizar artifícios para fingir que está bem financeiramente, porque ele se convence de que ganhará muito dinheiro. Apesar disso, geralmente, acaba perdendo muitos bens e deteriorando os relacionamentos, pois a jogatina vira o centro de sua vida.
A relação de Vicente com as apostas teve início em 2015, era apenas um hobby de seus amigos que o espreitava no trabalho. Também aderiu à prática, mas diferente dos outros, foi tomado pela compulsão com o passar dos anos. Ainda que diga ter feito o tratamento de câncer tranquilamente em 2022, sugere que a situação pode ter impulsionado o vício, porque o volume de apostas explodiu no período.
"é um ciclo que não acaba pra quem é compulsivo. Você não vai acabar, você nunca para de jogar."
Vicente fala sobre sua incapacidade de largar as apostas
Em julho de 2023, o avô dele faleceu na Bahia. Era o início de um período que desmoronaria seu casamento. Por ser economista, ele administrava todas as finanças e a confiança era alta entre ambos. Mas Vicente era um economista sem dinheiro. Endividado, arranjou desculpas à esposa para não comparecer ao velório.
Na rotina de trabalho, Vicente tinha a opção de ir ao local, mas preferia ficar no escritório de casa por ser mais fácil de apostar. Ele apostava no meio das reuniões online. Sempre atento aos passos da mulher, que estava em outro cômodo, fechava as telas dos jogos ao escutá-la se aproximar. Segundo a especialista Mariangela, o isolamento e a perda de vida social são características de viciados em jogos de azar.
A mentira não durou muito. No segundo semestre do ano, a luz do apartamento foi cortada e Vicente precisou ser honesto com a esposa, que iria realizar uma prova para se tornar delegada. Não passou. Separados desde setembro de 2024, alega que ela o culpa até hoje pelo ocorrido, mas não se sente no direito de pedir perdão. Assim como Victor, Vicente foi salvo por uma moça. A ex-mulher descobriu a irmandade Jogadores Anônimos na internet e o encaminhou. Em caso de recaída, ela o abandonaria, mas isso nunca aconteceu. Hoje, eles se respeitam e conversam quando Vicente vai visitar os bichos de estimação.
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PARTE II - Bebidas Alcóolicas
A DOSE PERDOADA POR DEUS
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“Eu comecei a aprontar. Levei mulher para dentro de casa, enquanto ela não tava, mas foi descoberto e ela me largou. Eu me atirei valendo. Aí eu senti que era um zero à esquerda no mundo”, lembra Caio. Aos quarenta e nove anos, o homem em recuperação do alcoolismo detalha as décadas em que era subjugado pela doença. Após 22 anos de casamento, o vício na bebida o fez trair a esposa. Desesperançada quanto à reabilitação do marido, ela o deixou há três anos e ele se afundou ainda mais no álcool durante os meses seguintes. Assim como em outros casos, o antigo relacionamento de Caio perdeu para um vício que o assombrava desde o início da fase adulta. O homem relata ter tido contato com maconha e cocaína durante o serviço militar, mas migrou para a bebida alcoólica por ser mais barata.
Atualmente, Caio faz parte da comunidade terapêutica Fazenda Cristo Rei, localizada em Frederico Westphalen, cidade do interior do Rio Grande do Sul com pouco mais de 32 mil habitantes.
Caio* durante entrevista, na Fazenda Cristo Rei, em Frederico Westphalen (RS)
Formado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP), Flavio Carneiro Hojaij explica que o álcool atua como inibidor, mas que é socialmente interessante por que “ele inibe, inicialmente, as inibições”, ou seja, as pessoas têm comportamento menos contido. Entretanto, com o tempo a bebida começa a interferir no cérebro, atrapalhando o raciocínio, a crítica e o senso de direção.
O médico cita a ataxia cerebelar como possível resultado do consumo de bebidas alcoólicas. Nesse caso, há alteração no funcionamento do cerebelo, uma parte do cérebro responsável por regular movimentos e controlar o equilíbrio. Com a mudança, a pessoa passa a ter perda de equilíbrio, dificuldade para andar e postura instável.

Fonte: Pixabay
Parte do cérebro mais afetada pelo álcool.
Médico Flávio Hojaij durante entrevista
Quando o hospital em que trabalhava na manutenção o demitiu para que ele buscasse tratamento, Caio conseguiu emprego de bicheiro. No cargo, ele recolhia dinheiro de apostadores do jogo do bicho e levava aos donos, por isso entrava frequentemente em botecos. Ao final da conta, diz que não sabia mais onde estava após tomar tanta bebida. Precisou ser internado diversas vezes com risco de perder o fígado. “Era a internação ou caixão”, desabafa Caio. Na Fazenda Cristo Rei, circulam três ‘C’ como possibilidade: comunidade, caixão ou cadeia.
A abstinência inicial foi violenta, o corpo anseia pelo álcool em falta. Caio teve três crises e precisou ser levado à uma Unidade de Pronto Atendimento na última. A assistente social da Fazenda, Anelise Piovesan, detalha que, durante as recaídas, os pacientes suam frio, tremem e chegam até a desmaiar. Há desistências, porque todo o processo é voluntário. O apoio dela se soma ao da psicóloga, que faz reuniões grupais ou individuais uma vez por semana, e da nutricionista, que comparece uma vez por mês.
Na comunidade, espiritualidade e simbolismo se misturam e ajudam no suporte emocional. Após avanço na recuperação, cada interno recebe um monitor como padrinho e ocorre o “batismo da monitoria”. Um pequeno livro, com toda a história do viciado, é queimado como sinal de etapa cumprida. O passado fica para trás, mas nunca é esquecido. “A gente tem que lembrar do passado, porque não quer mais voltar para lá”, comenta Caio.
Um ditado comum em grupos de apoio está presente na Fazenda: é só por hoje. Não existe ‘nunca mais beber’. A luta para se manter afastado do alcoolismo é diária. À noite, Caio sempre faz orações antes de dormir e enxerga sua recuperação como um renascimento proporcionado por Deus. O perdão próprio é uma das questões mais trabalhadas pelos profissionais.
Fotos: Fernando Simonet
Assistente Social Anelise durante entrevista, na Fazenda Cristo Rei, em Frederico Westphalen (RS)
Depois de seis meses, o interno inicia o processo de reinserção social. Uma semana em sua residência e um mês na comunidade, caminhando assim até completar nove meses. Mas nem sempre existe uma casa para voltar ou parente querendo ajudar, o retorno também pode gerar conflitos familiares e desencadear o vício novamente. Anelise explica que, nesses casos, a comunidade busca um cantinho para morar antes de proceder com a reinserção. Entretanto, como eles sobrevivem de instituições públicas ou pessoas sensibilizadas, é constante a dificuldade para conseguir grandes feitos.
Diante dos casos publicizados em grandes reportagens passadas que mostraram irregularidades e abusos de comunidades terapêuticas, a verba para esse tipo de instituição tem secado em âmbito municipal, estadual e federal. Inconformado, Caio afirma que muitos não sabem o que se passa no local, pensam que é só largar o viciado na Fazenda e está resolvido, mas há todo um trabalho conjunto e prolongado.
O homem auxilia a comunidade como pode, já que sente estar melhorando a si próprio ao ajudar os outros. As amizades e os parentes perdidos retornaram ao seu convívio. Um novo amor apareceu e se mantém há mais de um ano, com apoio e dedicação para o manter sóbrio. Caio, inclusive, é até capaz de servir cerveja às pessoas. “Só não posso com destilado por causa do cheiro, ele aguça minha memória química e pode botar tudo a perder”, admite.
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A PROFECIA DO FUMANTE
PARTE III - Tabaco
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Assim como o álcool, o médico Flavio Carneiro Hojaij explica que o tabaco promove e induz a alteração genética das células, o que pode levar à formação de um câncer. Ele compara o tabagismo, a dependência química e emocional do fumo, à uma poupança invertida. O pouco dinheiro guardado, com o passar dos anos, é bastante ampliado graças aos juros.
É assim com o cigarro. Aos vinte anos, fumar não deve trazer grandes consequências. Mas aos quarenta, o risco de doenças no pulmão ou no coração é muito maior. “Se o cigarro só faz mal e não dá nenhum bem-estar, ninguém ia ser fumante, né?”, questiona a psicóloga Mariangela Blois. Para ela, a definição de vício resume bem a prática: algo que traz um bem-estar imediato e compensa o mal que o indivíduo sabe que faz.
Rodrigo explica o que é a dependência em sua página no instagram "SOS Sobriedade", onde aborda temas relacionados a dependência química.
Apesar do tabagismo estar em queda globalmente, segundo a Organização Mundial da Saúde, ainda há 1,25 bilhão de fumantes. No Brasil, houve queda no consumo total, mas o sistema de Vigilância de Fatores de Risco para doenças crônicas não transmissíveis (Vigitel) aponta um fenômeno de aumento do fumo entre as mulheres brasileiras.
Rodrigo é um dos que conseguiram superar o vício em cigarro. Aos quarenta e quatro anos, é conselheiro terapêutico formado pela Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas. No momento desta reportagem, tem quase 130 mil inscritos no canal do Youtube, SOS Sobriedade, que segundo ele, serve como um trabalho de redução de danos para dependentes químicos e seus familiares.
“A minha tia fumava e eu ficava roubando o cigarro dela para sentir o cheiro, entendeu?”, conta Rodrigo. O conselheiro é da década de 1980, período em que o cigarro era símbolo de status e elegância. Os seus pais não fumavam, mas os amigos deles, sim, então o tabagismo sempre esteve ao redor dele. Começou o hábito aos doze até que, recém na fase adulta, teve uma crise de tosse seca e falta de ar que o obrigaram a ir ao médico. O profissional sugeriu que ele parasse de fumar imediatamente, porque os efeitos chegariam aos quarenta anos. Não obedeceu, mas nunca esqueceu.
Outra pessoa bastante impactada pelo cigarro foi Laudiceia, 39 anos, que reside em Pocrane (MG). Como na época de Rodrigo, havia certa beleza em ser fumante e iniciou desde criança. Quase toda sua família fumava. O médico Flavio lembra que, antes da década de 1990, havia propagandas que relacionavam o tabaco ao sucesso, esportes e prazeres. No momento, ela está sem fumar há sete anos, mas manteve o hábito por outros vinte e dois.
Flávio fala sobre as altas probabilidades de tumor causado pelo tabaco
Rodrigo explica que o cigarro permaneceu em toda a sua rotina. Ao dirigir, antes de dormir, durante a madrugada, no horário de trabalho, antes e depois de jogar futebol. O hábito também prejudicava sua esposa e bens materiais. Rodrigo é casado com uma psicóloga que nunca reclamou da prática, mas sempre foi fumante passiva, ou seja, estava exposta à inalação da fumaça e substâncias do cigarro. O carro adquiria marcas de brasa caída e as bermudas furavam ao se queimarem.
No caso de Laudiceia, o fumo diário prejudicou sua respiração e desempenho físico, mas ela não enxergava outra maneira de inibir o estresse. O médico Flavio não vê qualquer benefício em fumar. De acordo com ele, enquanto o álcool pelo menos se transforma em energia, o tabaco não possui nem caloria e ainda desagrada os outros pelo cheiro.
Flávio explica os efeitos causados pelo o uso excessivo do tabaco.
Aos trinta e nove anos, Rodrigo lembrou das palavras do antigo médico e decidiu parar de fumar com medo de ter acidente vascular cerebral, quando há entupimento ou rompimento de vasos que levam sangue ao cérebro. A primeira tentativa, porém, não foi bem sucedida. O abandono do cigarro levou a ataques de ansiedade e um quadro depressivo, mas ele não estava sozinho na jornada. A esposa foi fundamental na indicação de um médico que receitou os remédios corretos. Interromper a prática sem qualquer tipo de suporte é quase impossível para fumantes de longa data, por isso Laucideia também buscou profissionais de saúde e grupos de apoio. Ela também contou com o apoio de familiares e da igreja que frequenta. Com isso, relata ter parado de fumar após quarenta dias, apesar das crises de abstinência que persistiram por alguns meses.
No começo, movimentos de levar a mão à boca e caçar cigarro no bolso eram automáticos, mas o costume parou com o tempo. “Eu mascava muito gengibre para distrair o paladar e bebia muita água gelada”, recomenda Rodrigo. O especialista Flavio Hojaij aponta que é importante ter saúde física para fortalecer a saúde mental, pois alguns estudos mostram que pessoas com integridade física e mental respondem melhor aos tratamentos de câncer. Felizmente, o conselheiro não chegou a desenvolver a doença.
De imediato, Rodrigo notou melhora na respiração, menos pinicação na garganta e tosse. O crossfit, exercício físico de alta intensidade, ajudou bastante a motivar e a combater a ansiedade. Mas muitas vezes, há algo anterior ao vício. “Você vai entendendo que a droga nem sempre vai ser a causa do problema das pessoas e sim uma consequência de todo um contexto que precisa ser mudado”, completa Rodrigo.

SEGUNDAS
CHANCES
PARTE FINAL
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Palavras de motivação são tudo o que resta para os que lutaram ou lutam contra seus vícios. Em meio a comodidade e desespero de se ver afogando em um vício do qual não há garantias de controle, essas pessoas mantêm a uma esperança de que tudo pode passar. E para isso, a aceitação se constitui como o primeiro passo.
No entanto, há resistência e dificuldade no processo, como reforça a psicóloga Mariangela Blois: “como você vai fazer uma pessoa largar uma coisa que é boa e o prazer é instantâneo?”. O retorno simples, sem esforços, é um dos fatores que leva a pessoa à prática de muitos atos que podem passar a serem péssimos hábitos se consumados excessivamente.
Quanto à prática em si, seja o ato de jogar, beber e fumar, há a normalização na cerne do problema, como explorando antes nesta reportagem. Seja pelas propagandas populares, que transmitiam uma certa “beleza” em fumar e beber ou pelos cassinos antes liberados. Contudo, com o passar dos anos, como tudo se atualiza, não foi diferente com os vícios.
Os chamados vape, os famosos cigarros eletrônicos e a digitalização dos jogos de azar, presentes com facilidade na internet, são exemplos das mudanças introduzidas na sociedade. E para pior, já que estes podem causar impactos maiores ainda na vida dos indivíduos.

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Mas para além das possíveis influências, as motivações são variadas. Alguns por diversão, outros pelo prazer momentâneo, alguns por conta do estresse e a sensação de alívio. Isso os leva para uma vida autodestrutiva física e mental. E por esse motivo, o Médico Flavio Hojaij destaca a importância de um tratamento com “abordagem multidisciplinar”, através de apoio psicológico, medicamentos e de grupos de apoio.
Hoje reabilitados, Rodrigo e Laudiceia, que deixaram o cigarro para trás, reiteram sobre a busca por ajuda como um fator importante. Ambos reforçam que não se trata de “falta de vergonha na cara” e nem que basta ter “força de vontade”. É necessário que haja uma intervenção externa.
Para isso, cada uma dessas pessoas afetadas se agarra a uma possibilidade de superar seus vícios. Elas tentam manter pensamentos positivos, dever para com suas famílias e fé em suas crenças. “Eu sei que existe a segunda chance, e eu tô aqui pra confirmar isso”, relata Caio, destacando sua fé em Deus.
Luz no fim do túnel
Muito se fala sobre se permitir e tentar mais uma vez. Após a aceitação, é necessário que a pessoa que está em recuperação reconheça as dificuldades que enfrenta no caminho para superar seus vícios. Mariangela Blois diz que “as recaídas são frequentes”, já que o processo é longo.
Todos tiveram, uma vez ou outra, recaídas. “Quando batia uma certa instabilidade, a vontade de jogar aumentava”, relata Vicente. Era um desejo constante na vida de cada uma das pessoas que relataram sua história na reportagem presente. Seja a vontade compulsiva de jogar, como Victor e Vicente. Seja a vontade de beber, como relatada na história de Caio. Seja na história de Rodrigo e de Laudiceia, em suas lutas diárias contra o anseio de fumar.
E o que todos possuíam em comum? A esperança de que existia uma saída, mesmo que cheia de dificuldades. O vislumbre de uma reintegração social com a ausência de seus vícios, significava a oportunidade de experenciar uma vida melhor.
Para Victor, a sua “luz no fim do túnel”, como disse durante a entrevista, se chama Jogadores Anônimos. Foi durante as reuniões que encontrou uma forma de escapar das turbulências em sua vida e colocar sua vida “de volta para sociedade”. Já Vicente repete para si mesmo: “eu sou um doente, sou compulsivo e o meu melhor remédio é estar lá”. É a aceitação que os mantém longe de suas dependências.
Caio encontrou conforto na comunidade da Fazenda Jesus Cristo Rei. Ao lado de seus companheiros de jornada e através de sua fé, pôde compreender que “todo mundo é passível de erro”. Em seus conselhos, salienta que todos os que estiverem passando pela mesma situação, procure ajuda especializada.
Igualmente, Rodrigo diz que a ajuda profissional através de medicamentos e acompanhamento terapêutico é essencial. Ter uma percepção e conhecimento sobre o assunto, assim como sua esposa ao lado, o ajudou a “pensar em estratégias”, diz Rodrigo. E assim foi com Laudiceia, que na cidade onde mora, teve conhecimento de como se tratar e com apoio da família e de membros de sua igreja, conseguiu largar o hábito de fumar e enfim, seguir seu caminho sem o vício que a prejudicava.
Contatos e informações importantes:

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Jogadores Anônimos
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Centro de Valorização da Vida
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"Malvado Favorito", é uma reportagem sobre vícios desenvolvida para a disciplina de Reportagem Convergente, no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria, campus Frederico Westphalen (UFSM/FW).