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A DOSE PERDOADA POR DEUS
PARTE II - Bebidas Alcóolicas
“Eu comecei a aprontar. Levei mulher para dentro de casa, enquanto ela não tava, mas foi descoberto e ela me largou. Eu me atirei valendo. Aí eu senti que era um zero à esquerda no mundo”, lembra Caio. Aos quarenta e nove anos, o homem em recuperação do alcoolismo detalha as décadas em que era subjugado pela doença. Após 22 anos de casamento, o vício na bebida o fez trair a esposa. Desesperançada quanto à reabilitação do marido, ela o deixou há três anos e ele se afundou ainda mais no álcool durante os meses seguintes. Assim como em outros casos, o antigo relacionamento de Caio perdeu para um vício que o assombrava desde o início da fase adulta. O homem relata ter tido contato com maconha e cocaína durante o serviço militar, mas migrou para a bebida alcoólica por ser mais barata.
Atualmente, Caio faz parte da comunidade terapêutica Fazenda Cristo Rei, localizada em Frederico Westphalen, cidade do interior do Rio Grande do Sul com pouco mais de 32 mil habitantes.
Caio* durante entrevista, na Fazenda Cristo Rei, em Frederico Westphalen (RS)
Formado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP), Flavio Carneiro Hojaij explica que o álcool atua como inibidor, mas que é socialmente interessante por que “ele inibe, inicialmente, as inibições”, ou seja, as pessoas têm comportamento menos contido. Entretanto, com o tempo a bebida começa a interferir no cérebro, atrapalhando o raciocínio, a crítica e o senso de direção.
O médico cita a ataxia cerebelar como possível resultado do consumo de bebidas alcoólicas. Nesse caso, há alteração no funcionamento do cerebelo, uma parte do cérebro responsável por regular movimentos e controlar o equilíbrio. Com a mudança, a pessoa passa a ter perda de equilíbrio, dificuldade para andar e postura instável.

Quando o hospital em que trabalhava na manutenção o demitiu para que ele buscasse tratamento, Caio conseguiu emprego de bicheiro. No cargo, ele recolhia dinheiro de apostadores do jogo do bicho e levava aos donos, por isso entrava frequentemente em botecos. Ao final da conta, diz que não sabia mais onde estava após tomar tanta bebida. Precisou ser internado diversas vezes com risco de perder o fígado. “Era a internação ou caixão”, desabafa Caio. Na Fazenda Cristo Rei, circulam três ‘C’ como possibilidade: comunidade, caixão ou cadeia.
A abstinência inicial foi violenta, o corpo anseia pelo álcool em falta. Caio teve três crises e precisou ser levado à uma Unidade de Pronto Atendimento na última. A assistente social da Fazenda, Anelise Piovesan, detalha que, durante as recaídas, os pacientes suam frio, tremem e chegam até a desmaiar. Há desistências, porque todo o processo é voluntário. O apoio dela se soma ao da psicóloga, que faz reuniões grupais ou individuais uma vez por semana, e da nutricionista, que comparece uma vez por mês.
Na comunidade, espiritualidade e simbolismo se misturam e ajudam no suporte emocional. Após avanço na recuperação, cada interno recebe um monitor como padrinho e ocorre o “batismo da monitoria”. Um pequeno livro, com toda a história do viciado, é queimado como sinal de etapa cumprida. O passado fica para trás, mas nunca é esquecido. “A gente tem que lembrar do passado, porque não quer mais voltar para lá”, comenta Caio.
Um ditado comum em grupos de apoio está presente na Fazenda: é só por hoje. Não existe ‘nunca mais beber’. A luta para se manter afastado do alcoolismo é diária. À noite, Caio sempre faz orações antes de dormir e enxerga sua recuperação como um renascimento proporcionado por Deus. O perdão próprio é uma das questões mais trabalhadas pelos profissionais.
Imagem: Fernando Simonet
Assistente Social Anelise durante entrevista, na Fazenda Cristo Rei, em Frederico Westphalen (RS)
Depois de seis meses, o interno inicia o processo de reinserção social. Uma semana em sua residência e um mês na comunidade, caminhando assim até completar nove meses. Mas nem sempre existe uma casa para voltar ou parente querendo ajudar, o retorno também pode gerar conflitos familiares e desencadear o vício novamente. Anelise explica que, nesses casos, a comunidade busca um cantinho para morar antes de proceder com a reinserção. Entretanto, como eles sobrevivem de instituições públicas ou pessoas sensibilizadas, é constante a dificuldade para conseguir grandes feitos.
Diante dos casos publicizados em grandes reportagens passadas que mostraram irregularidades e abusos de comunidades terapêuticas, a verba para esse tipo de instituição tem secado em âmbito municipal, estadual e federal. Inconformado, Caio afirma que muitos não sabem o que se passa no local, pensam que é só largar o viciado na Fazenda e está resolvido, mas há todo um trabalho conjunto e prolongado.
O homem auxilia a comunidade como pode, já que sente estar melhorando a si próprio ao ajudar os outros. As amizades e os parentes perdidos retornaram ao seu convívio. Um novo amor apareceu e se mantém há mais de um ano, com apoio e dedicação para o manter sóbrio. Caio, inclusive, é até capaz de servir cerveja às pessoas. “Só não posso com destilado por causa do cheiro, ele aguça minha memória química e pode botar tudo a perder”, admite.